Os atrasos nos pagamentos do Estado angolano, a situação da banca nacional ou a dívida pública do país são assuntos que uma delegação do Fundo Monetário Internacional (FMI) vai abordar com o Governo, em Luanda, a partir de quinta-feira.
De acordo com uma informação prestada hoje à agência Lusa pelo Ministério das Finanças, a delegação do FMI, chefiada pelo economista brasileiro Ricardo Velloso, vai manter, até 17 de Novembro, reuniões com elementos do Governo e da administração de várias empresas públicas, ao abrigo dos contactos bilaterais anuais (Artigo IV).
A agenda desta missão do FMI – que surge 4 meses após o Governo angolano ter recusado um programa de assistência que antes pediu à instituição, aquando do agravamento da quebra da cotação do petróleo, no primeiro semestre do ano – prevê a discussão com as autoridades angolanas da evolução do quadro fiscal e da dívida pública, bem como “os últimos desenvolvimentos do sector bancário” ou os pressupostos para Orçamento Geral de Estado (OGE) para o ano fiscal de 2017.
Angola, o maior produtor de petróleo em África, vive desde o final de 2014 uma profunda crise financeira, económica e cambial decorrente da quebra para metade nas receitas com a exportação de crude.
A situação levou à revisão em baixa, para 1,1%, das previsões do Governo para o crescimento económico do país em 2016, o registo mais baixo em vários anos.
O investimento público e pagamentos do Estado também se ressentiram destas dificuldades financeiras, ao mesmo tempo que a dívida pública a um ano já paga juros acima dos 20%.
A banca enfrenta igualmente dificuldades, nomeadamente instituições financeiras detidas pelo Estado, como o Banco de Poupança e Crédito, que apresenta um volume de crédito malparado superior a 1,1 mil milhões de euros e terá de ser recapitalizado com dinheiros públicos.
Segundo o Ministério das Finanças, nestas reuniões com a missão do FMI serão também analisadas as projecções dos indicadores económicos para 2017, bem como estimativas para o crescimento do sector petrolífero e não petrolífero.
O Governo angolano prevê que a economia cresça 2,1% em 2017, ano em que espera produzir mais de 1,8 milhões de barris de petróleo por dia, a um preço estimado de 46 dólares por barril.
Os dados constam do relatório de fundamentação da proposta de (OGE) para 2017, que deu entrada sexta-feira na Assembleia Nacional, prevendo igualmente que as contas públicas voltem a apresentar um défice, no próximo ano, de 5,3% do Produto Interno Bruto (PIB).
“As previsões apontam para uma melhoria do desempenho da economia nacional, em 2017, considerando uma taxa de crescimento do PIB real de 2,1%, com o sector petrolífero a crescer 1,2% e o sector não petrolífero 2,3%”, refere ainda o documento.
No OGE que agora segue para discussão na Assembleia Nacional, o Governo prevê receitas e despesas, para todo o ano de 2017, de 7,307 biliões de kwanzas (40,3 mil milhões de euros). Neste caso, as receitas serão financiadas com 3,142 biliões de kwanzas (17,3 milhões de euros) de endividamento do Estado.
Angola contará assim com o quarto ano consecutivo de défice nas contas públicas, depois dos estimados 7% do PIB em 2016, 3,3% em 2015 e 6,6% em 2014.
A missão do FMI presente em Luanda vai ainda discutir com a equipa económica governamental “aspectos ligados” às operações do Governo no mercado de títulos e cambial, a gestão das reservas internacionais líquidas, a gestão da tesouraria, “incluindo a evolução das contas a pagar e pagamentos atrasados”, entre outros assuntos.
Divórcio (mais ou menos) amigável
Em Junho deste ano o porta-voz do FMI afirmou em conferência de imprensa na sede da instituição, em Washington, que Angola desistiu das negociações sobre um eventual “programa de financiamento ampliado” do FMI, mas pretende manter as conversações ao nível de consultas técnicas com os funcionários daquela organização, que regressam a Luanda antes do fim do ano.
“O Presidente da República de Angola informou o FMI sobre a decisão de manter o diálogo com o Fundo apenas no contexto do artigo IV ‘consultas’ e não no contexto de discussão sobre o programa de ajuda EFF (Programa de Financiamento Ampliado)”, disse o porta-voz da instituição.
Gerry Rice confirmou que “houve uma alteração” e que “as discussões respeitantes a um possível programa de assistência já não entram no âmbito dos técnicos”.
O porta-voz explicou que terminou uma missão a Luanda: “E essa foi a missão que teve a ver com a possibilidade de um programa de financiamento ampliado”, disse.
“Uma equipa do FMI irá a Luanda novamente, provavelmente em Outubro, para ‘consultas’ ao abrigo do artigo IV”, disse Gerry Rice.
O FMI anunciara a 6 de Abril que Angola solicitou um programa de assistência para os próximos três anos, cujos termos foram debatidos nas reuniões de Primavera, em Washington, prosseguindo em Luanda na primeira quinzena de Junho.
Ricardo Velloso revelou então que o Fundo estava à espera que o Governo angolano dissesse se mantém o seu pedido de assistência financeira, feito numa altura em que o preço do barril de petróleo estava mais baixo.
O FMI é uma organização que reúne 189 países, entre os quais Angola, com o objectivo de “promover a cooperação monetária global, assegurar a estabilidade financeira, facilitar o comércio internacional, promover elevados níveis de emprego e crescimento económico sustentável e reduzir a pobreza em todo o mundo”.
FMI. Solução ou problema?
No dia 16 de Maio deste ano, o Folha 8 perguntava: “FMI. Solução para os problemas ou problema para as soluções”. Tínhamos razão, se bem que as motivações do não de José Eduardo dos Santos sejam diferentes. O Presidente queria, afinal, que o FMI só mudasse as moscas. A tese não pegou e o regime virou-se para o amigo de sempre, a China.
A descida de preço das matérias-primas está a obrigar vários países africanos a recorrerem ao FMI, que até há pouco tempo tinha sido substituído pela banca comercial, cujos empréstimos são agora incomportáveis.
“Um pouco por toda a África, os países que até há pouco tempo não precisavam do FMI como credor de último recurso estão a engolir o orgulho”, escrevia em Maio o Financial Times, num artigo com o título “Tempos difíceis empurram africanos de volta para o FMI”.
O artigo apresentava os exemplos de Angola, Moçambique, Zimbabué, Nigéria e Gana, entre outros, para defender que o recurso aos sistemas de financiamento do FMI são agora menos difíceis do que nos anos 80 e 90, quando vários países foram obrigados a recorrer ao FMI e tiveram como resposta um conjunto de medidas de austeridade que tornaram o Fundo altamente impopular no continente.
“Há menos estigma em pedir ajuda ao FMI, em parte porque o Fundo já não é tão rígido em enfiar medidas neoliberais pela garganta abaixo dos países, sendo agora mais cuidadoso na protecção da saúde, educação e programas de alívio da pobreza”, escreveu o jornalista David Pilling.
O artigo defendia que o recurso ao FMI por esta altura é mais fácil também porque as condições macroeconómicas do continente melhoraram significativamente face ao panorama dos anos 1980 e 1990, mas nalguns países, como Angola, o tempo perdido é notório.
Ao contrário do previsto, Angola, cujos governantes esbanjaram milhares de milhões de dólares durante os preços altos do petróleo, recusou-se a provar o remédio do FMI, optando por outros tratamentos, sobretudo pela “medicina tradicional” chinesa.
A verdade é que, com maior ou menor sensibilidade social, o FMI continua a vestir a pela de cordeiro para, muitas vezes com requintes de malvadez, disfarçar a faminta hiena que existe na sua metodologia de trabalho.
O FMI, neste caso, sempre soube – até mesmo quando andou por cá a vender gato por candimba – que o Povo angolano morre de fome e de doenças enquanto Isabel dos Santos, a princesa herdeira do rei Eduardo dos Santos, continue a abarrotar as suas contas milionárias por ordem exclusiva do pai.
E o que fez o FMI? Nada. É certo que não lhe cabia intervir. Pois é. Só lhe cabe deixar que o país vá ao charco para depois, qual salvador, dar uma salsicha por cada porco sacado.
O que fez o FMI quando se tornou público o descalabro em que a gestão da Sonangol mergulhou nos últimos tempos? Nada. Quanto pior… melhor, terá pensado a directora-geral do FMI, Christine Lagarde.
Recorde-se, entre outros exemplos, que Tom Burgis, autor do livro “A Pilhagem de África”, considera que a Sonangol opera à margem da lei (ou dentro da suprema lei do regime: quero, posso e mando) e que foi criada e responde directamente apenas às mais altas figuras políticas de Angola, sobretudo a Eduardo dos Santos.
O autor do livro defende que a Sonangol foi criada inicialmente (e assim se mantém ao longo de décadas) para conseguir financiar o MPLA, mas que com o passar dos anos acabou por ser a mais importante empresa nacional, controlada directamente pelos principais responsáveis políticos (do MPLA) e fugindo ao controlo das autoridades externas, já que as internas são do… MPLA.
“Para manter o MPLA a andar, tinham de criar uma empresa que corresse bem. A Sonangol é uma das melhores empresas africanas e mundiais, e foi Manuel Vicente [vice-presidente de Angola], treinado em Londres, que foi geri-la. A partir de 2002 começa a ser óbvio que o MPLA ía ganhar a guerra, e portanto a empresa pode privatizar-se, já não precisa de financiar a guerra, e torna-se o motor deste Estado-sombra”, defende o autor, jornalista de investigação no britânico Financial Times.
“As instituições formais, como o Ministério das Finanças ou o Banco Central, mantêm-se, mas a Sonangol é um Estado dentro de um estado, e responde directamente ao dono disto tudo: José Eduardo dos Santos.
“A Pilhagem de África”, explica o autor, “começa com a ideia de que há uma maldição dos recursos, e mostra que os sítios mais ricos em recursos naturais caíram sempre em golpes de estado, guerras, violência interna, corrupção, opressão, e o padrão está mais exacerbado em África”.
O continente africano, acrescenta, é normalmente olhado como mais pobre, mas é o mais rico, tem um terço de todos os recursos naturais, “mas os padrões de vida são terrivelmente baixos”, tentando mostrar que “a maldição dos recursos’ não é um acidente, nem um conceito abstracto, é um sistema concreto de pilhagem que liga políticos locais, autoridades de segurança, intermediários, empresas petrolíferas e os consumidores dos materiais recolhidos em África”.
E com o país à beira do colapso, devido à conivência criminosa de muitas instituições internacionais, entre as quais o FMI, aparece a equipa de Christine Lagarde, desta vez com a farda de bombeiros, para apagar o fogo. É claro que todo o equipamento de piromania está pronto para atear novos fogos.
Folha 8 com Lusa